domingo, 10 de junho de 2012

'Se o senhor é o Bispo, eu sou o Papa'

para Júlio Saraiva
O motorista do ônibus não entendeu o português enrolado do homenzinho magro, calça de brim surrada, camiseta branca e sandálias de couro. Estacionou o veículo na beira da estrada, para que o homenzinho descesse. E depois partiu. O homenzinho só havia pedido para urinar. O condutor não entendeu e o largou, tarde da noite, na escuridão da estrada.
Este foi um episódio ocorrido com Dom Pedro Casaldáliga, missionário clareteano (da Congregação fundada por Santo Antônio Maria Claret), que havia acabado de ser sagrado bispo da miserável região de São Felix do Araguaia, até hoje conturbada por sangrentas lutas pela disputa da terra. Na época, fins da década de 1970, a situação era pior ainda: os órgãos de repressão do governo militar, instalado no Brasil em 1964, descobriram que ali estava sendo articulada a luta armada para pôr fim à ditadura. Naquela noite, Pedro Casaldáliga pediu abrigo na casa de um camponês, que ainda não o conhecia. Ao dizer que era o bispo, o camponês, antes de lhe dar pousada, sorriu e disse, vendo-o naqueles trajes: "Se o senhor é bispo, eu sou o papa. Mas pode entrar."
Pedro Casaldáliga juntou-se à luta do seu povo simples e massacrado. Escondeu guerrilheiros. Teve sua extradição pedida pelos latifundiários. Recebeu advertências do Vaticano, que fingiu não entender. Foi jurado de morte diversas vezes. Hoje, aposentado, não retornou a Espanha, preferindo continuar no meio de índios e posseiros, mesmo contra a vontade dos seus superiores.
O ritual de sua sagração episcopal foi diferente dos demais. Dispensou todas as pompas.Não deitou no tapete vermelho, mas sim numa esteira de vime, às margens do rio Araguaia. Em lugar da mitra, usou um chapéu de palha de pescadores. Em lugar do cajado episcopal, um par de remos.O anel foi enviado à mãe na Espanha e trocado por uma modesta aliança de casca de coco. Palácio? Como palácio, monsenhor optou por uma choupana idêntica a do povo local. Escreveu um diário, e vários poemas, como este:

A paz inquieta

Dá-nos, Senhor, aquela PAZ inquieta
Que denuncia a PAZ dos cemitérios
E a PAZ dos lucros fartos.
Dá-nos a PAZ que luta pela PAZ!
A PAZ que nos sacode
Com a urgência do Reino.
A PAZ que nos invade,
Com o vento do Espírito,
A rotina e o medo,
O sossego das praias
E a oração de refúgio.
A PAZ das armas rotas
Na derrota das armas.
A PAZ do pão da fome de justiça,
A PAZ da liberdade conquistada,
A PAZ que se faz “nossa”
Sem cercas nem fronteiras,
Que é tanto “Shalom” como “Salam”,
Perdão, retorno, abraço...
Dá-nos a tua PAZ,
Essa PAZ marginal que soletra em Belém
E agoniza na Cruz
E triunfa na Páscoa.
Dá-nos, Senhor, aquela PAZ inquieta,
Que não nos deixa em PAZ!